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Entrevista a Noam Chomsky (en portugués)

Tomado de www.econac.net

Ao lado da economia oficial está o dinheiro da Máfia, a droga e a corrupção. Ficamos com a sensação de que a economia invisível se tornou mais importante que a visível...

Está correcto, mas só em parte. A economista britânica Susan Strange (1), no seu último livro, demonstra que o dinheiro gerado pela corrupção e pela droga é muito pouco quando comparado com outra forma de corrupção, a saber, todas as técnicas utilizadas pelas multinacionais para se livrarem de pagar impostos. Por exemplo, se uma empresa instala a sua sede social nas Ilhas Virgens britânicas, isso não é considerado corrupção. Uma multinacional pode escolher o país onde repatriará os seus benefícios, mas a isto chama-se “optimização fiscal”. A multinacional organiza-se administrativamente para pagar os impostos no país onde as cargas fiscais são mais baixas. É corrupção, mas é legal.

É provável que esta corrupção legal tenha repercussões muito mais importantes que a ilegal...

A corrupção legal constitui uma temática de estudo muito interessante, mas muito poucas pessoas se têm dedicado a estudá-la porque esta chega até ao centro do próprio poder. Calcula-se que aproximadamente metade do dinheiro da droga circula através dos bancos norte americanos. Ou seja: os bancos norte americanos branqueiam metade do dinheiro do narcotráfico. Existem meios para erradicar esta prática, e, de facto, no início dos anos oitenta fez-se algum intento.

Nos Estados Unidos, quando se deposita uma quantidade elevada de dólares em qualquer banco é necessário declarar o depósito às autoridades federais. Portanto, era necessária uma declaração escrita. Até 1980, os fiscais de Miami notaram que se estava a efectuar uma grande afluência de dinheiro nos bancos da cidade. Então puseram em marcha a operação Greenback (término de Argot para “dinheiro”), uma investigação policial que pretendia descobrir quais os bancos que faziam circular dinheiro ilegalmente. George Bush (2), que durante a Administração Reagan ascendeu ao posto de “Czar da droga”, acabou rapidamente com esta operação.

A imprensa norte americana difundiu esta informação?

Um jornalista mais conhecido, no mínimo, mencionou o caso: Jefferson Morley. Mas os políticos não querem enfrentar os bancos.

A que se poderia comparar a Máfia da actualidade?

A Máfia estadunidense está antiquada. A maioria dos delinquentes actuais são homens de negócios normais. E a justiça tem vindo a colocar fora de jogo, pouco a pouco, os antigos capos mafiosos. Agora que a sociedade obedece a regras mais restritas e racionais, a Máfia copia o mundo empresarial.

E sobretudo o das multinacionais, já que para a Máfia desapareceram as fronteiras: a polícia de cada país não pode ultrapassar as fronteiras, mas as Máfias sim...

Os países mais poderosos já não precisam de fronteiras.

Quando os Estados Unidos querem destruir metade da produção farmacêutica do Sudão, não vacial em fazê-lo. E não esqueçamos do que o que está a acontecer nos Andes! Os Estados Unidos obrigaram os países andinos a aceitar a sua política de destruição dos cultivos de coca. Estes países são contra essa medida, pois sabem que quem padecerá das consequências será a população local:- os camponeses. Quando se fumigam os cultivos com produtos tóxicos, ao mesmo tempo são destruídas muitas outras coisas. E, segundo a maioria dos especialistas, tampouco se conseguiu acabar com a produção de cocaína. Por outro lado, toda a gente sabe que o problema tem mais a haver com a “procura” do que com a “oferta”. O problema está nos Estados Unidos, não na Colômbia.

Também se sabe que aplicar medidas preventivas seria muito mais eficaz que criminalizar, proibir ou destruir cultivos no estrangeiro. Contudo, normalmente, as medidas preventivas não encontram financiamento. E além disso, que direito têm os Estados Unidos em empreender um ataque militar e uma guerra biológica contra um país cuja produção agrícola não lhe agrada, sem sequer levar em conta que os camponeses se vêem obrigados a cultivar estes produtos por causa da política neo liberal que lhes foi imposta? Na Ásia morrem milhares de pessoas todos os anos devido a substâncias mortais fabricadas nos Estados Unidos. Terá a China direito a bombardear as plantações de tabaco da Carolina do Norte (Estado americano) como represália?

Em qualquer caso, nos Estados Unidos a corrupção política tem aumentado muito nos últimos anos. Foram tomadas algumas medidas contra isto?

Tudo depende do que se entende como corrupção. Por exemplo, nas eleições (3) de 1998, 95 em cada 10 0 candidatos que foram eleitos investiram mais dinheiro que os seus adversários na sua campanha eleitoral. E quase todo este dinheiro era procedente do mundo empresarial. Ou seja: o sector privado comprou, por assim dizer, 95 em cada 100 membros do Congresso. Mas isto não é considerado corrupção.

O New York Times publicou um interessante artigo sobre este assunto. O Congresso acaba de concluir o debate sobre o pressuposto e já tinham começado a dividir os denominados “suplementos de carne”, por assim dizer, as “medidas diversas” de interesse local que se votam in extremis para contentar determinados congressistas. É evidente que os congressistas mais influentes são os que mais recebem. Em 1999 bateram o seu próprio recorde e repartiram uma quantidade considerável de dinheiro entre os seus amigos e eleitores ricos. E era dinheiro público! Os piores, com diferença, são os que recortam os programas sociais ou propõe que as mães pobres recebam vales alimentares em vez de um subsídio para que aprendam a não depender das ajudas sociais. Todos os anos, Newt Gingrich (4), o mais chulo de todos, arregaça-se para enviar a maior quantidade possível de dinheiro público aos seus eleitores ricos da Georgia. E a imprensa está ao corrente de tudo isto, supostamente.

Não acredita que o tendão de Aquiles do liberalismo reside nos paraísos fiscais e no racionamento da circulação de dinheiro?

É certo que, sem as telecomunicações, não existiriam os mercados financeiros tal como os conhecemos, contudo, no passado já existiram outras revoluções ainda maiores e, mesmo assim, uma mesma tecnologia pode ser utilizada com fins totalmente distintos. A tecnologia é neutra. Por exemplo, pensemos na lira italiana ou em qualquer outra moeda, só tem valor porque a sociedade decide atribuir-lhe um, mas a lira não vale nada por si mesma. Não é mais que um bocado de metal ou de papel. A moeda é o resultado de uma decisão colectiva, o mesmo vale para o dinheiro electrónico. É indiferente falarmos de papel moeda, de moeda escritural ou de dinheiro electrónico: trata-se fundamentalmente do mesmo.

As novas tecnologias não se inventaram para favorecer a especulação e de facto podiam estar ao serviço das pessoas, ajudando a organizar a nossa existência.

O problema radica bem mais nos paraísos fiscais. Actualmente têm tendência a proliferar.

Os paraísos fiscais estão muito concentrados geograficamente: por exemplo, vejamos os acordos comerciais efectuados com a China que foram aprovados pelo Congresso em Novembro de 1999. Se tudo funciona como desejam os Estados Unidos, graças a estes acordos as entidades financeiras norte-americanas acabarão por controlar os mercados financeiros chineses, os bancos chineses e as sociedades de inversão chinesas. É esse o objectivo. Foi o que ocorreu na Coreia do Sul, quando os Estados Unidos obrigaram o país a abrir o seu mercado. O resultado foi um crack da bolsa, obviamente, e agora as instituições financeiras norte-americanas começaram a perder o controlo sobre os bancos sul-coreanos.

Voltemos à questão da circulação dos capitais. Segundo afirma, como se distribui o dinheiro?

Diariamente circulam cerca de dois mil milhões de dólares em formato electrónico. Este dinheiro não cria novos activos, uma vez que se limita a mudar de proprietário.

A maior parte destes capitais servem para financiar aquisições empresariais. Uma pequena parte destina-se a investimentos directos no estrangeiro, e outra pequena parte serve para criar algo novo: por exemplo, quando a Volkswagen instala uma fábrica no Brasil. Mas grande parte do dinheiro invertido no estrangeiro corresponde a aquisições empresariais. A privatização não é mais que a passagem dos activos de uma empresa pública para uma empresa privada ou para uma multinacional estrangeira. Em geral, estes activos são cedidos porque há corrupção. E segue-se o mesmo processo em todo o lado, do México até à Rússia.

Não se conhece bem o alcance dos movimentos de capitais distintos, uma vez que a maior parte dos países não divulgam cifras concretas...

Por outro lado, o Departamento do Comércio norte-americano publica um informativo detalhado sobre o que denomina de “investimentos directos no estrangeiro”. Em meados dos anos noventa, na época dos “novos mercados emergentes”, passei dois ou três anos a observar as cifras publicadas. E comprovei que no hemisfério ocidental (com excepção do Canadá), na época em que os mercados emergentes geravam uma grande euforia, cerca de 25 em cada 100 dos investimentos directos no estrangeiro foram parar às Bermudas, cerca de 10 em cada 100 às Ilhas Virgens britânicas, e outros 10 em cada 100, ao Panamá. Deste modo, metade do dinheiro investido no estrangeiro acaba em paraísos fiscais, e é provável que uma pequena parte provenha, ilegalmente, do dinheiro da droga.

Os paraísos fiscais só existem porque são convenientes aos países ricos. E se lhes convém a sua existência, é porque, assim, as grandes empresas podem roubar impunemente os cidadãos. É esse o papel do Estado: conseguir que os ricos enriqueçam cada vez mais.

Está claro: se as empresas podem roubar os cidadãos instalando a sua sede num paraíso fiscal e deixando de pagar impostos, porque vamos impedi-lo?

Como se pode lutar contra este fenómeno?

Bastaria que os Estados Unidos dissessem às Ilhas Caimão ou às Ilhas Virgens que se tinham cansado desta história. Sejamos sinceros: se os Estados Unidos quiserem acabar com esta prática, podem fazê-lo de imediato.

Por outra ordem de ideias, pensemos no que aconteceu com a Indonésia. Os Estados Unidos e a Grã Bretanha apoiaram claramente esse país. Durante todo o ano de 1999, quando Timor Leste foi cenário de atrocidades terríveis, piores que as do Kosovo, os Estados Unidos e a Grã Bretanha negaram-se a intervir.

Finalmente, em Setembro de 1999, quando quase toda a população foi obrigada a sair de Timor Leste e o país se encontrava completamente devastado, Clinton foi submetido a tais pressões, tantos nos Estados Unidos como na Austrália, que se viu obrigado a fazer algo e criticou os generais de Jacarta. Quarenta e oito horas depois, o Governo punha término às matanças e autorizava a entrada de uma força multinacional.

Teria sido suficiente aprovar uma lei...

Não é necessária uma lei específica. Eu acredito na lei, parece-me algo bom, mas se não é respeitada não serve para nada. E estas pessoas não respeitam o direito internacional. Quando as forças da OTAN bombardearam o Kosovo, preocuparam-se por estar a infringir a Carta das Nações Unidas? Não.

Não subestima o poder dos juizes na luta contra a corrupção?

Sem apoio externo, os juizes não têm poder nenhum. O Governo trava-os por uma razão muito sincera: nem as grandes empresas nem os Estados querem ser submetidos a uma investigação judicial.

As empresas geram mais vítimas do que a delinquência na via pública. Sem excepção, quase nunca são perseguidas. Em 1988 levou-se a cabo um processo muito pouco habitual. Duas das mais importantes companhias farmacêuticas norte-americanas, a Lilly e a Smithkline, foram acusadas de provocar a morte de oitenta pessoas após colocarem à venda medicamentos acompanhados de informações confusas. Receberam uma multa de oitenta mil dólares por causarem a morte de oitenta pessoas. Por outro lado, se alguém matar oitenta pessoas na rua, vai directamente para o corredor da morte.

Na Itália, por exemplo, onde a corrupção se tinha generalizado, a Operação Mãos Limpas alterou a situação.

Mas com uma dificuldade, quando os juizes intentam actuar com independência dos governos, estes travam-nos.

Nos EUA quando os fiscais, que desempenham o mesmo papel dos juizes na Europa, começaram a investigar o dinheiro do narcotráfico que estava a entrar nos bancos da Flórida, o vice-presidente George Bush, que era na altura responsável pela luta contra a droga, travou-os logo a seguir. Como a opinião pública não sabia nada sobre o assunto, não pôde exercer nenhum tipo de pressão.

De qualquer modo, visto da Europa, ficamos com a impressão de que os Estados Unidos têm um sistema judicial eficaz.

Castigam-se os crimes cometidos pelas empresas? Não. E, sem excepção, este tipo de delitos causam muitas mais vítimas do que a delinquência comum; isto é algo no qual coincidem todos os criminólogos e juristas. Acontece o mesmo em Inglaterra. Recentemente escrevi um prefácio para um livro do jurista britânico Gary Slapper, Blood In The Bank , sobre os crimes e delitos que têm cometido as grandes empresas em Inglaterra.

O aparato jurídico existe e a justiça funciona, mas não pode ser utilizada contra os poderosos, a menos que se exerça uma pressão muito forte.

Vejamos um exemplo especialmente esclarecedor. Nos anos cinquenta, o Governos dos Estados Unidos colocou em marcha um dos mais ambiciosos programas de engenharia social de todos os tempos. Consistia em desmantelar a rede de transportes públicos em benefício das carreiras de autocarros e de aviões.

Até então tínhamos tido um sistema de transportes ferroviário muito eficaz. Nos anos quarenta, Los Angeles dispunha de uma rede electrificada muito bem organizada e que não contaminava. Foi comprada por três companhias: a General Motors, a Firestone Rubber Company e a Standard Oil. E estas três empresas desmantelaram a rede ferroviária para favorecer o transporte de carreira (em autocarro e automóveis), com o qual podiam ganhar muito dinheiro. Após serem acusadas de associação ilícita, foram julgadas e condenadas com uma multa ridícula, de uns cinco mil dólares.

Logo, amparando-se dos interesses de Defesa Nacional, entrou em cena o Governo norte-americano e construiu uma rede de auto-estradas da qual fazem parte todas as vias importantes que existem hoje em dia nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, o Governo destruiu a rede ferroviária e dedicou-se a construir aeroportos. Como resultado, criou-se um sistema de transportes que não se baseia na lógica do serviço público, e sim na lógica industrial.

Quais foram as consequências?

Foram enormes, começando pelo deterioramento dos centros históricos das cidades e a deslocação dos habitantes para a periferia. As cidades já não têm centro, as pessoas vivem nos arredores, onde existem muitos centros comerciais. Resumindo podia dizer-se que hoje em dia as pessoas vivem em centros comerciais.

Este gigantesco programa de engenharia social, desenhado para enriquecer os fabricantes de automóveis, pneus, etc e as petrolíferas, tiveram também um grande impacto na sociedade, nos hábitos de consumo, nas relações pessoais. Levou ao alienamento e à ruptura das comunidades. E por acaso se julgou ou condenou alguém? Não. Mas existem leis que permitem fazê-lo. Mas a realidade é que ninguém está consciente do que ocorre.

Ouvindo-o falar ficamos com a sensação de que se tratam de tendências iniludíveis e implacáveis...

Para que as pessoas reagissem teriam de dispor de informação. Por isso sou um firme partidário da educação popular, compreendida como algo muito distinto dos meios de comunicação social, da escola ou da cultura intelectual dominante. Em segundo lugar, seria necessária uma mobilização como a que conduziu à instauração dos direitos humanos ou a que apregoava a igualdade entre homens e mulheres. (5)

Na Suíça notou-se uma alteração no início dos anos noventa, quando o cantão de Genebra elegeu como fiscal Bernard Bertossa, um homem partidário da cooperação judicial, e além do mais adoptou-se uma lei que obriga as empresas que transferem dinheiro para outros países a identificar as compartilhas com sedes em paraísos fiscais.

Quando o povo pressiona, podem conseguir-se coisas, os mecanismos jurídicos não faltam, já que a maior parte das leis necessárias já existem.

A Suíça é um caso aparte: nem sequer está garantida a liberdade de expressão. Por exemplo, na última vez que estive na Suíça a convite da Liga Internacional de Mulheres pela Paz e pela Liberdade, uma ONG, que me convidou para pronunciar uma conferência na Universidade de Genebra. Algumas semanas antes de discursar telefonou-me a presidente da Liga e disse-me que a polícia suíça queria ver o texto da minha conferência antes de eu a efectuar, e além disso queria que eu me restringisse ao texto que estava escrito. Naturalmente que neguei aceitar esta imposição, e a Liga Internacional de Mulheres também se opôs. Finalmente, a conferência foi celebrada no Centro Europeu de Investigação Nuclear, que se situa em território internacional. (6)

Quem compreende que num país civilizado não se possa pronunciar uma conferência numa universidade sem que a polícia leia o texto antes?

Na Suíça acontecem coisas deste tipo. Na realidade, a Suíça não possui um Governo verdadeiro, é um país regido por bancos. O Governo encarrega-se da educação, dos transportes públicos, de tudo o que é da competência de uma Administração Local. Na Suíça, um historiador de diplomacia não pode trabalhar com documentos oficiais porque não existe um arquivo nacional digno desse nome. Contudo, mesmo num país assim, quando a opinião pública desperta, as coisas podem ser mudadas.

Notas:

1 – Susan Strange, Mad Money , University of Michigan, 1998.

2 – George Bush, que não conseguiu ser eleito candidato do Partido Republicano para as eleições presidenciais de 1980, foi eleito vice-presidente por Ronald Reagan, seu adversário durante as primárias. Enquanto ocupava este cargo foi responsável de diversas iniciativas, como a política de liberalização federal ou a luta contra a droga. Depois de ser eleito presidente dos Estados Unidos em 1988, George Bush retomou os grandes princípios da “guerra contra a droga” decretada por Ronald Reagan.

3 – Esta informação procede do Center for Responsive Politics, uma instituição independente que analisa os resultados eleitorais.

4 – News Gringrich, fervente partidário da revolução conservadora, eleito presidente da Câmara de Representantes depois da vitória dos republicanos nas eleições legislativas de 1994. O seu tom provocador e a radicalidade das suas posturas morais converteram-no no homem que ocupava o terceiro cargo mais importante da Administração e num dos líderes republicanos mais populares. Após ser eleito em Janeiro de 1998, viu-se obrigado a demitir-se depois de ser condenado por fraude fiscal.

5 – As mobilizações para a declaração dos “direitos humanos” e o apoio ao feminismo foram efectuadas pelo próprio sistema, sem mencionar que já apoiava o próprio poder dominante da igualdade, etc... Não se apoiou uma declaração dos “deveres humanos”, nem foi criado um apoio às mulheres que desejassem ser mães de família numerosa, isso sim, nunca teve o apoio do sistema demo-liberal.

6 – Supomos que Chomsky não se recorde de que o revisionismo esteja proibido na Suíça e em muitos outros países... e que não os deixam falar nem em território internacional nem em nenhum outro sítio. Deve-se esta razão à existência de temas que são verdadeiramente anti-sistema, e outros que são só aborrecidos para o sistema.

Esta entrevista surgiu originalmente com o título “La Economia Invisible” na revista Autogestión , esta tradução foi efectuada com base no texto reproduzido na publicação Bajo La Tirania , nº 65, Maio de 2004

Noam Chomsky está sentado no seu gabinete da Faculdade de Linguística e Filosofia do Massachusetts Institute of Technology (MIT), em Harvard, onde ensina há quase cinco décadas. As eleições americanas foram apenas há menos de uma semana, mas parecem ter passado longe daquela sala. Para quem se identifica com as linhas tradicionais do anarco-sindicalismo e do socialismo libertário, a contagem dos votos só pode ser encarada com um sorriso e um encolher de ombros. Outro resultado mudaria os EUA assim tanto?

Noam Avram Chomsky nasceu em Filadélfia, Pensilvânia, a 7 de Dezembro de 1928. Filho de um académico judeu nascido na Rússia, cedo revelou uma invulgar capacidade intelectual.

Após ter estudado linguística, matemática e ciência política, tornou-se um dos mais brilhantes académicos norte-americanos, com uma vasta obra publicada em todo o mundo e que lhe mereceu inúmeros doutoramentos honoris causa . Títulos como American Power and the New Mandarins , Peace in the Middle East? , The Culture of Terrorism , Manufacturing Consent ou Hegemony or Survival contribuíram para o prestígio deste crítico feroz da política externa dos EUA.

Que consequências tem a reeleição de George Bush?

Nos Estados Unidos vamos assistir à continuação do esforço intenso para desmantelar o sistema de Protecção Social que tem sido desenvolvido no último século. Basta ver a reacção das administrações das empresas e dos grupos de lobby aos resultados eleitorais. Estão em euforia completa. E vai prosseguir o ataque ao sistema de impostos progressivos. Esta Administração continuará a reduzir os impostos para os mais ricos. E os outros que vão vivendo.

E internacionalmente?

Os planos iniciais deles (a Administração Bush) eram muito ambiciosos. Tencionavam transformar o sistema militar americano, de forma a pôr o mundo inteiro em risco de aniquilação imediata. Mais tarde houve uma contra-reacção. A Rússia tratou de se equipar para ficar à altura e muitos estrategos começaram a recear que tudo aquilo podia significar o juízo final. Vão também continuar a minar tratados internacionais, desde o Protocolo de Quioto, sobre as emissões de dióxido de carbono, aos tratados sobre desarmamento. Os planos iniciais incluíam levar a agressividade e a violência o Médio Oriente não só ao Iraque, mas provavelmente também ao Irão e à Síria, podendo passar ainda pela América do Sul. Mas penso que esses planos ficaram abalados, devido aos extraordinários fracassos da guerra no Iraque. Devia ter sido a ocupação militar mais fácil da história.

Afinal, longe disso...

Devido a uma total incompetência e arrogância conseguiram criar uma resistência, que ganhou bastante força e agora não podem dominar. Se pensarmos na II Guerra Mundial, os americanos estão a ter mais problemas no Iraque do que os Nazis na Europa ocupada. Estes resolveram o assunto mais depressa, recorrendo a colaboradores locais, à polícia local, mais o apoio de soldados alemães. No Iraque isto acabou por ter mais custos e sair muito mais caro e, assim, tornou-se improvável o uso directo da força noutros locais.

E sem ser directo?

Vão apoiar-se mais na subversão, como fizeram com o golpe de Estado na Venezuela, e possivelmente também em forças israelitas que estão a ser intensamente apoiadas pelos americanos, como uma espécie de força mercenária e que pensariam utilizar talvez no Irão, embora não me pareça que ainda o façam. De qualquer modo não creio que possam continuar com a agressividade internacional que tinham planeado, embora os programas militares devam prosseguir. No entanto, devo dizer que a população se opõe fortemente a todas estas medidas.

De certeza?

As posições do povo americano são muito diferentes das dos dois partidos. A grande maioria da população acredita que devem ser as Nações Unidas e não os Estados Unidos a liderar, para resolver conflitos internacionais. E opõe-se ao uso da força, excepto em circunstâncias muito limitadas, como se o país for atacado ou estiver em risco disso. As pessoas são a favor da adesão dos Estados Unidos ao Protocolo de Quioto, ao Tribunal Penal Internacional (TPI) ou aos tratados de desarmamento. Não querem que os recursos que eram dantes utilizados em Saúde, Educação ou Protecção Social vão para o armamento. Isso são posições que ultrapassam até as fronteiras entre republicanos e democratas. Mas nenhum dos dois partidos responde a estas questões.

Se a maioria da população pensa assim, porque foi Bush reeleito?

Isso não significa muito. Aliás, nem sequer aprendemos nada nestas eleições que já não soubéssemos antes. Cada candidato conseguiu cerca de 30% dos votos, atendendo ao número total de eleitores. Bush teve um pouco mais de 30% e Kerry um pouco menos de 30%. Só 60% dos eleitores se deram sequer ao trabalho de votar. E a diferença entre eles foi pequena para um país grande e significa muito pouco. Se esse reduzido grupo de pessoas tivesse votado noutro sentido ou ficasse em casa, Kerry era eleito, sem que o país fosse muito diferente por causa disso.

Realmente?

As pessoas não votaram nas questões de fundo. Quando se vêem as sondagens, só 10% dos eleitores escolheram pelas ideias ou pelas políticas de cada candidato. O resto votou pela imagem. E quem cria a imagem sabe disso. Bush foi apresentado como um líder forte na guerra ao terrorismo e como alguém com valores. E as pessoas preocupadas com o terrorismo e o que chamam valores optaram por ele. Mas votaram numa imagem, não numa realidade. O mesmo se passou com John Kerry. Foi projectado como um candidato preocupado com a economia ou o sistema de saúde. Então, as pessoas para quem, de facto, essas são as questões mais importantes votaram nele. Mas é preciso tentar ver as políticas que estão por detrás dessas imagens. Isso só se descobre com práticas, não com palavras.

Uma vitória diferente não teria feito diferença no Iraque?

John Kerry não tinha um programa diferente para o Iraque. Isso era uma coisa correcta que Bush dizia. Internamente, Kerry não iria atacar o limitado mas existente sistema de taxação progressiva do código fiscal. As administrações das empresas não estariam muito preocupadas, se ele ganhasse, mas não ficariam a festejar como estão. E é possível que tivesse uma política menos agressiva internacionalmente. Há algumas diferenças entre ambos, mas não era sobre isso que estávamos a falar, mas sim porque razão votaram as pessoas. As pessoas preocupadas com o terrorismo votaram em Bush. Ele vai protegê-las disso? Não. Ele aumenta a ameaça do terrorismo. Bush e os seus conselheiros sabiam perfeitamente que era provável que a invasão do Iraque fizesse crescer o terrorismo. Mas eles tinham outras prioridades.

Então?

Se todos os iraquianos sabem isso, não há razão para que nós ignoremos tal facto. O Iraque fica exactamente no coração dos recursos energéticos mundiais. Tem imensa energia intocada e barata. Quem controlar o Iraque terá uma alavanca poderosa para controlar o mundo. Além de todos os lucros que isso representa para as corporações americanas, quem controlar a energia fica com uma influência enorme sobre os principais rivais dos EUA, isto é, as economias da Ásia e da Europa. Logo a seguir à II Guerra Mundial se percebeu isso. Quem controlasse o petróleo ficaria com o que o departamento de Estado chama “uma enorme fonte de poder estratégico”. Não se importam se aumenta o terrorismo.

Mas muita gente acreditou nisso...

As pessoas que escolheram Bush a pensar que se defendiam do terrorismo, estavam completamente erradas. Votaram no aumento do terrorismo sem saber. E o mesmo se passa, quando as pessoas dizem que votaram Bush pelos seus valores. Mas que valores? Se olharmos para as administrações das empresas, estão eufóricos. Porquê? Porque Bush é contra o aborto? Não, porque vai dar-lhes presentes. Isso é que são os valores. Enriquece os mais ricos e faz pagar os custos disso aos trabalhadores e também aos nossos filhos e netos. São eles que vão pagar a conta da destruição do ambiente e do aumento do défice. Se olharmos para Kerry, não era assim tão diferente.

Não?

Dizia que ia melhorar a Saúde, mas não defendia o que a maioria da população quer, isto é, um sistema nacional de saúde, semelhante ao que existe nos outros países industrializados. E isto nem sequer era uma opção, porque ninguém apresentava esta proposta. Na maioria das questões, a população está mais à esquerda do que os dois partidos. Ou, em termos europeus, mais ao centro, deixando os dois partidos à direita. Apenas votam em imagens que são falsas e enganadoras.

A reeleição de Bush que consequências terá em todo o Médio Oriente? A guerra no Iraque não vai parar tão cedo...

Não é claro. Como disse, os nazis na II Guerra Mundial e até os russos na Europa do Leste resolveram o assunto muito mais facilmente. Isto que se passou no Iraque é invulgar. Possuem tanto poder, a desproporção de meios é tão grande que é difícil acreditar que não funcione. Vejamos Fallujá, que estão outra vez a atacar. Já conseguiram eliminar grande parte da população enquanto bombardeavam a cidade. Os marines atacaram em grande força. É uma incompetência enorme que não tenham sido capazes de conquistar a cidade em poucos dias. Mas como têm uma força enorme nas mãos, talvez acabem por conseguir derrotar a resistência...

E se conseguirem?

Arranjarão para o Iraque uma solução semelhante à que já encontraram para outros, em que são teoricamente independentes. Na América Central, os países são autorizados a tornar-se independentes, desde que façam o que lhes dizem. Caso contrário, são esmagados. Toda a História americana nos mostra isso. É preciso ser cego para não ver essa realidade. È o que estão agora a tentar conseguir no Iraque ou, então, não faria sentido ter invadido o país. Se fizer o que lhe dizem, será livre. E tentarão chegar tão longe quanto puderem no resto da região. No caso de Israel, a escolha é clara. Israel é tão poderoso e os palestinianos tão fracos, que eles partem do princípio de que Israel os esmagará. Os palestinianos não possuem riquezas nem poder. Portanto, não têm direitos, pelos mais elementares princípios da força das nações.

Se Arafat vier a ser substituído, qual pode ser o papel de Bush?

É interessante porque, quando Bush fez o seu discurso visionário a anunciar que ia levar a democracia ao Médio Oriente, Yasser Arafat era já um líder democraticamente eleito, ao contrário do que sucede em quase todo o Médio Oriente. Foi imediatamente posto de lado. Decidiram que não o queriam, porque não fazia o que lhe diziam. É por isso que estavam encantados com Portugal e com Espanha, mas não com a França e a Alemanha. No caso de Portugal, não conheço os números, mas sei que a maioria da população era contra a guerra. Em Espanha o Governo deu o seu apoio contra a esmagadora vontade da população. A certa altura só 2% se mostravam favoráveis à guerra. Em França e na Alemanha agiram de acordo com a vontade das pessoas. Por isso, em relação a Arafat, se arranjarem alguém que permita a Israel ficar com a maioria dos territórios ocupados, muito bem. Será pura democracia.

In Visão nº 610, 11/11/04.

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